segunda-feira, 9 de novembro de 2009

UMA DISSIDENTE NO KINDERGARTEN

Em 1979 eu tinha 5 anos e nenhum poder decisório no que ao meu destino dizia respeito. É assim que me encontram, pela mão dos meus militantes progenitores, em Berlim, do outro lado do muro. A mim ninguém me pediu memórias, mas como pelos vistos o socialismo era sobretudo um andaime montado a pensar em mim/nós (fardo pesado para quem já trazia às costas o excesso de esperança de ser filha de uma revolução), hoje vou fingir que tenho alguma coisa a acrescentar ao que o meu pai já disse.
De facto, posso falar-vos de parques infantis de madeira, de ir para a escola de trenó, ou de cozer ovos em casca de cebola na Páscoa, que alguém depois escondia no jardim. Ou do gummibaerchen, um só, que nos davam quando nos faziam maldades nos postos de saúde — até hoje nenhuma goma conseguiu igualar o sabor daqueles ursinhos solitários. No Natal os meus pais ofereceram-nos um arco e flechas de madeira, lindíssimo, que fez de mim a filha de acolhimento do socialismo mais feliz do mundo, mas lhes valeu uns olhares desagradáveis, porque não era suposto darem-nos… armas.
A memória mais vívida que tenho é a daquele fatídico dia em que os desgraçados nos deixaram, a mim e ao meu irmão de 3 anos, a apodrecer no kindergarten. Apesar da nossa tenra idade, não era assim tão raro deixarem-nos ir sozinhos para casa (era só praticamente atravessar a rua), desde que devidamente autorizados por escrito pelos encarregados de educação, e eu tentei explicar à frau-não-sei-quantos (com bastante estridência e eloquência, a julgar pela replicazinha que agora tenho em casa) que o caminho era o mesmo, e que portanto, se queria chegar ao supermercado a horas, era só deixar-nos ir discretamente. Lembro-me de a ouvir repetir, quase em êxtase, que não havia autorização para aquele dia. Quando a coisa chegou ao ponto de estarmos prestes a ir para casa com ela, eu atravessei a rua a correr e refugiei-me em casa de algum vizinho, o que na altura não era estranho, porque estávamos sempre enfiados nas casas uns dos outros. O banana do meu irmão ficou lá, obedientérrimo e abandonado. E foi isso que todos me apontaram nos dias seguintes: fugir da escola é como o outro, mas deixar um irmão para trás é que não! O único castigo que tive foi o ostracismo temporário dedicado aos individualistas, mas a desgraçada da educadora foi suspensa. Quando regressou brindou-me com um sermão cheio de palavras carregadas de futuro, como solidariedade, responsabilidade, fraternidade e supermercado, mas eu disse-lhe, no meu alemão perfeito de quem aprende uma segunda língua aos 5 anos, que não estava a perceber patavina, e que se calhar era melhor falar em português…
Durante anos achei que este episódio tinha definido para sempre a minha relação com o socialismo autoritário, mas hoje tenho sentimentos muito mais forte perante a memória gélida de uns duches frios que o socialismo prescreveu contra as minhas bronquites crónicas. Que cegueira ideológica leva um par de seres pensantes a condenar uma filha enferma a tamanho sofrimento?!
A verdade é que me lembro de muito pouco. E o pouco que lembro tem o dedinho claro do que os meus pais me foram dizendo ao longo dos anos. Para nós a RDA não passou a existir quando o muro caiu, nem se reduz ao muro ou à sua queda. Se calhar foi por isso que a queda do muro, quando eu tinha 15 anos e era militante da JCP, me provocou sentimentos mistos mas fáceis de conciliar. Há 20 anos e ainda hoje. Por um lado, foi natural e benvinda, porque mais valia que se acabasse de vez com os equívocos e promiscuidades entre igualdade e Stasi, entre o culto da solidariedade e o medo permanente. Por outro lado, foi um choque ver tanta gente a correr para trocar a saúde e a educação gratuitas por uma televisão a cores. Embora eu soubesse que se tivesse ficado na RDA teria feito o mesmo. Afinal, deitar o muro abaixo seria a consequência lógica e natural de tudo o que a RDA tinha de bom para ensinar às suas crianças. Digo eu, que se calhar aprendi um bocadinho da lição.
Aos 5 anos, não havia muro. Mas havia a Brigitte, a minha boneca preta, tão única quando voltei a Lisboa em 1980 como os ursinhos dos hospitais de Berlim. Vi uma de relance no Adeus Lenine e passei o resto do filme a chorar. Para mim, 1979 foi, afinal de contas, um ano de luxo. A alternativa à nostalgia mentirosa ou à visão não menos falsa de uma RDA que mais não foi que pura treva e repressão é saber que o amadurecimento desse luxo é um sonho que ainda está por construir. Mas sem muros nem banhos gelados.


2 comentários:

  1. Gostei mesmo muito desta tua partilha, Mariana.
    Não podia concordar mais contigo - temos ainda muito futuro para construir, e devêmo-lo aos nossos filhos. Um futuro solidário, equalitário, justo. Sem muros, sem repressão. Com a paz, o pão, a saúde e educação, em detrimento da tv a cores :)

    ResponderEliminar
  2. Mariana
    Continuamos à procura do sonho, tu, eu, o teu pai os nossos amigos. Como vamos conseguir?
    Gosto da maneira como escreves e como sentes, mesmo sabendo que é diferente da tua em pequenos promenores . Sou Cota!
    Mas podemos todos sonhar e isso é bom que nos unir. Melhoras da virose que já anda por aqui há algum tempo, conta comigo para "irmos para a rua cantar".
    Abraço

    ResponderEliminar