domingo, 8 de novembro de 2009

UM ESTALINISTA NA RDA

O PCP convidou-me em 1979 para ir trabalhar para a RDA. Iria também a Maria Ermelinda e os nossos filhos. Acabara de fazer o estágio pedagógico e ir viver num país socialista era uma aposta interessante. Dados necessários para compreender a situação: estamos em 1979, ainda com a revolução na ponta das nossas esperanças, o socialismo de leste parece estar em boa forma, acredito piedosamente que o comunismo é o futuro e não sei uma palavra de alemão. Era o que hoje, em bom rigor, se chamaria um estalinista chapado.
Fomos muito bem recebidos, instalados primeiro num magnífico apartamento na Fisherinsel (acho que era assim que se chamava), e um mês depois num apartamento mais modesto — mas muito confortável — num bairro novo, na Ho Chi Minh Strasse. Apartamentos muito melhores do que eu alguma vez tivera em Portugal. A minha paixão de que "o socialismo é que era" acentuou-se com a possibilidade de por os putos no kindergarten — eu nunca tinha andado num jardim infantil. E, tanto quanto me recordo, ainda hoje considero que o kindergarten era excepcionalmente bom. Chateavam-nos se os putos não iam bem agasalhados e, se faltavam, lá vinham eles saber o que passava. Um dia houve em que por descoordenação entre nós — os pais — nos atrasámos a ir buscá-los: levei um enorme raspanete, e o que valeu é que era em alemão e eu não percebi quase nada. Se outras coisas não houvesse, o socialismo era o kindergarten e o extremo cuidado com que lá se tratavam as crianças. Mas era também a possibilidade de ir à policlínica do bairro sempre que algum de nós se constipava — e o cuidado extremo com que os médicos nos tratavam. Sobretudo à Mariana, que andava sempre constipada e a quem eles aplicavam as kurzvwelle (não sei se era tratamento eficaz, mas se era no socialismo era bom com certeza). Lembra-me da figura um pouco assustada da "camarada funcionária" quando, na apotheke, perguntei no meu estranho alemão quanto tinha que pagar pelos medicamentos receitados. Nada, está claro! E o socialismo ia de vento em popa quando via as turmas dos putos invadirem a piscina do bairro, onde eu tentava dar uns mergulhos de manhã quando não tinha aulas. Nunca tinha visto nada de parecido nas escolas primárias do meu país. O socialismo é que era!
Imaginem um "portuga" a quem para ensinar a sua língua a adultos alemães, cujo destino eram as colónias portuguesas, é dado um completíssimo laboratório em que se podiam gravar as aulas, se podia ouvir individualmente o que cada um dizia e corrigi-lo. Alunos que evidentemente nunca faltavam e estudavam sempre impecavelmente as lições. O socialismo é que era, carago! E a prova de que estávamos à beira do paraíso era que, quando recebia o ordenado — ganhava bem e parte do vencimento era pago em marcos ocidentais, um privilégio — já vinha descontada a renda da casa, a luz, a água, o aquecimento, que, no seu conjunto, não ultrapassavam 10% do vencimento (era mais ou menos isso). E para tratar de qualquer problema no apartamento ou no prédio, chamava-se o Hausmeister e ele lá tratava do assunto.
Claro que havia coisas que desde logo me pareceram pequenas lacunas no paraíso: havia nos Strassenbahn (eléctricos, uns modernos, outros do tempo da guerra) umas maquinetas estranhas de onde se tirava um papel que era o "bilhete" e onde se deviam pôr uns trocos prefixados. Eu punha — era para alimentar o socialismo — mas a maioria dos "socialistas alemães" entravam, tiravam o papelucho e… não deitavam as moedinhas! Havia socialistas com falta de consciência de classe — o socialismo ainda não era perfeito. O U-Bahn (espécie de metro) era de fugir. E eu, catequizado na teoria de que o futebol era a alienação das massas, não percebia porque é que todos os dias a Fernsehen transmitia um jogo dessa coisa. Para não falar das inenarráveis borracheiras dos camaradas alemães no fim de semana.
Pior um pouco foi quando me apercebi que o Bock, que era o melhor professor de nós todos, não podia ser director lá da escola nem ter responsabilidades porque era crítico do sistema. E também não gostei nada quando tive de ir "à força" agitar uma bandeirinha à passagem do Brejnev. E quando me consegui relacionar com alguns alemães, pude perceber que a maioria deles, mesmo em Berlim, não viviam como eu vivia. Havia bairros e casas degradados, os meus marcos ocidentais eram um luxo, o "muro" perturbava-os mesmo, e o medo da polícia era permanente. E a maioria deles queria continuar socialista. Mas era evidente que ou havia mudanças sérias — ajudaram-me a perceber o bloqueio que se adensava sobre a economia do país — ou aquilo dava para o torto. Apercebi-me disso pouco antes de me vir embora — embora "eles" insistissem para que eu ficasse. Eu era de confiança!
Não seria justo se não me referisse à cultura que se respirava em Berlim. Bons grupos de teatro, bons concertos no Palast der Republik, museus impecáveis, livros muito baratos (pelo menos quando comparados com o que eu conhecia de Portugal...). Pena que o meu alemão fosse bastante limitado.
Lembro-me do mal estar quando, nas Caldas da Rainha, onde regressei uns tempos quando vim para Portugal, na então Casa da Cultura, falando sobre a minha experiência na RDA, coloquei sérias reticências quanto ao futuro... Seriam certamente já os meus "desvios de direita", com que o PCP me viria sistematicamente a mimar nos tempos seguintes.
Assistir à queda do muro pela televisão doeu-me. Era o fim de um sonho. Apesar de tudo, eu fora feliz na RDA e aquela gente merecia muito mais do que ser "anexada" pela RFA. Apesar de tudo, saí de lá a acreditar que o socialismo superaria a crise.
Hoje, aceito que a queda do Muro era inevitável. E foi sadia para nós todos.
 
Texto publicado no Esquerda.net


5 comentários:

  1. se os kurzwelle eram aqueles magníficos banhos gelados, que pena não te ter dado a perestroika mais cedo. que arrepios!

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  2. Bom texto.
    Aconteceu-te o mesmo que ao meu único primo materno, reputado advogado da nossa praça.(Tem mais 8 anos que eu, é mais velho que tu) Em 1974,largou tudo e passou a funcionário do PCP, também foi para a URSS, quando voltou saiu do Partido e explicou-me porquê.
    Parabéns.
    Um Abraço.

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  3. Excelente texto, conteúdo interessante. Narração fluisa, quase a parecer fácil. Venham mais destes. João Paulo Videira.

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  4. Obrigada pelo seu testemunho!
    Gostei de o ler :)

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