Depois admiram-se (ou talvez não). Mascaram-se de grandes defensores da democracia participativa, mas fica-lhes o rabo de fora: estão-se marimbando para as consultas populares em geral, e usam-nas para tentar subverter um princípio básico da democracia representativa — o da legitimidade parlamentar para legislar em torno de temas constantes dos programas de quem foi eleito. E usam-no porque apostam no poder persuasivo da Igreja Católica e da sua máquina social e num conservadorismo ultramontano que acreditam estar na essência dos portugueses. Parece que não aprenderam nada em Fevereiro de 2007. E não é porque o aborto seja assunto que lhes passe ao lado — é só olhar para eles para ver que é a mesma pandilha dos movimentos anti-escolha.
Estas manobras cínicas dos anti-tudo-o-que-não-seja-o-que-eles-praticam até podem servir-lhes de pouco (ou não), mas têm ferido de morte o uso legítimo do referendo em Portugal. O que me chateia um bocadinho, até porque gostava francamente de ter sido consultada acerca de um assunto que diz directamente respeito a todos os que cá vivem e para o qual o governo não tinha qualquer legitimidade para decidir: a ratificação do Tratado de Lisboa.
Que fique bem claro: eu gosto mais de referendos do que de casamentos — faz-me confusão que se contratualizem os afectos. Tenho bom remédio, não é? Não me caso, e acabou-se a história. Mas olhem que há casamentos que me fazem mais espécie que outros: os acordados por outras partes que não as envolvidas, os que são celebrados em países onde não há divórcio, aqueles em que um dos cônjuges muda de apelido ou os que se sentem ameaçados por a Helena e a Teresa também se poderem casar, por exemplo. Tudo coisas defensáveis para muito boa gente, mas para mim não. Vou olhar para os gays casados com a mesma perplexidade com que olho para os hetero que dão o nó. Mas ficarei feliz por a minha perplexidade não lhes interferir com a felicidade, como não interfere com a de ninguém. Porque o que está em causa não é o casamento (casamentos já há muitos, passa a haver mais um), mas sim o que o Estado tem a dizer sobre a homossexualidade — ou a considera uma forma legítima de relação entre duas pessoas, e portanto implementa legislação que expresse (ess)a igualdade, ou assume que o que é legítimo é que se restrinja o acesso a um acto regulado pela lei com base na orientação sexual.
Imaginemos que seria legítimo referendar a forma que cada um escolhe para viver os seus afectos. Porque não referendarmos, nesse caso, os casamentos em geral, incluindo, a la California, os já celebrados? É bem possível que exista por aí uma maioria silenciosa, composta por gente com objecções ideológicas profundas ao casamento ou com motivações que vão desde a inveja à frustração, que não veja com bons olhos que outros se casem. Seria legítimo sequer que fossem(^os) chamados a pronunciar-se/nos sobre o assunto? Pois não seria nem mais nem menos mesquinho do que referendar o casamento entre pessoas do mesmo sexo — em ambos os casos tratar-se-ia de um referendo acerca de direitos básicos, que afectam apenas aqueles que os querem exercer.
Em suma: quem é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo tem bom remédio: não se casa com uma pessoa do mesmo sexo. Ou casa, se um dia achar que a felicidade depende disso. Escusam é de me convidar. Desejo-vos as maiores felicidades do mundo, mas não acho mesmo piada à coisa.
Muito bom, este texto.
ResponderEliminarÉ claro e conciso, como deveriam ser todos.
"Quem quer casar com o João Ratão, que é rico e bonitão?".
Eu não quero, mas se alguém quiser que faça o favor.
...e está isento de me convidar, pois então.
Quando encontrar o meu João Ratão convido-te para madrinha e, ai de ti, terás de aceitar e fingir-te feliz com a improvável felicidade assim consagrada.
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