quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

PELO SUPERIOR INTERESSE DE TODAS AS CRIANCINHAS (MAS MESMO TODAS)

Ao que tudo indica, o governo vai hoje avançar com a sua proposta de legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Uma boa notícia, sem dúvida. Mas uma boa notícia estragada pela clarificação de que o mesmo texto legislativo que visa, teoricamente, combater a discriminação contém uma cláusula explicitamente discriminatória no que diz respeito à adopção de crianças por parte de homossexuais… casados.
Não se trata de mau feitio, nem tão pouco de saber se o copo fica meio cheio ou meio vazio. Há contradições que transformam alcançar uma causa numa vitória de Pirro.
Vejamos: um homossexual, tal com um heterossexual, pode adoptar uma criança. Casar fá-lo perder esse direito, o que transforma desde logo este casamento em algo de diferente do casamento entre heterossexuais. Passaremos a chamar pelo mesmo nome aquilo que nós mesmos tornamos diferente.
A importância, legal e simbólica, do casamento entre pessoas do mesmo sexo mede-se apenas e somente pelo reconhecimento da legitimidade das famílias compostas por homossexuais. Explicitar que essas famílias têm um senão, que é o de não poderem adoptar crianças, significa que a. são famílias de segunda; b. são famílias cujo contributo para a sociedade se reduz a uma espécie de quarentena: "façam o que quiserem, mas não arrastem terceiros para essa aberração que passamos a reconhecer legalmente."
O pavor da adopção é um sintoma de homofobia pura, daquela que não se mascara com operações de cosmética política e meias medidas. Temem todos os que se benzem perante a possibilidade de uma criança institucionalizada ser entregue aos cuidados de homossexuais que essa criança seja maltratada — ora, todos os estudos publicados indicam precisamente o contrário. Mas aqui pergunto: por que raio tem a capacidade parental dos homossexuais de ser comprovada através de estudos científicos? Essa necessidade faria sentido se existissem indícios de pior desempenho parental — e esses indícios só existem nos meandros do preconceito.
No fundo, o que assusta tanta gente é a possibilidade do "nascimento" de estruturas familiares centradas em torno de casais homossexuais. Lamento chocar muita gente, mas essas estruturas já existem. Se ainda não deram por elas, é porque de facto as crianças que vivem com duas mães ou dois pais não são em nada diferentes das que vivem com uma mãe e um pai ou só com um deles. E são precisamente essas crianças as principais vítimas de uma cláusula discriminatória, que lhes diz, entre outras coisas, que os seus pais/mães não o deveriam ser. E pior ainda: o vazio legal deixa-as completamente desprotegidas, ao não reconhecer legalmente o vínculo afectivo real que existe entre elas e a mãe/pai não biológico (que, por exemplo, não terá acesso à guarda parental na morte do companheiro/a). É por respeito a elas que hoje não abro a garrafa de champanhe.
Em suma, este casamento será sempre um casamento com um modificador — não é um casamento entre pessoas, é um casamento entre pessoas do mesmo sexo. Como se a igualdade fosse um gradiente; como se não estivéssemos a andar para trás ao misturar conjugalidade e parentalidade (ao menos que tivessem a sensibilidade sociológica de separar as questões) e ao diferenciar a capacidade parental de casados e não casados, independentemente da sua orientação sexual. Se isto é um passo em frente, teremos de passar pela fase dos "pais/mães incógnitos do mesmo sexo" antes de vermos a co-parentalidade de gays e lésbicas legalmente reconhecida?
Estranhamente, quem anda sempre com os direitos das crianças na boca esquece-se do mal que está a fazer a todas as crianças que não vivem em famílias tradicionais. Estabelecer rankings de modelos familiares é que é uma violência tremenda. O que vale é que, apesar de tudo, estes abutres, melhor ou pior intencionados, um dia perceberão que as nossas crianças são de facto aberrantes: criadas no amor de famílias de muitos tamanhos e cores e, pasmem… felizes. 

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