segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

NOT IN MY NAME

Amanhã, Julian Assange vai ser ouvido em tribunal a propósito de crimes sexuais alegadamente cometidos na Suécia. A audição vai ter lugar em Belmarsh, local normalmente destinado a casos de terrorismo.
São obviamente coisas muito diferentes. Defender a WikiLeaks e a liberdade de expressão não implica complacência perante crimes sexuais. Mas quando atacar a WikiLeaks passa por criar ambiguidades graves no tratamento destas agressões, o que está em causa já não é só a liberdade de expressão, é também a coerência do feminismo.

1. Julian Assange não foi ainda acusado de nada. A justiça sueca deseja interrogá-lo acerca de uma eventual "violação menor", figura jurídica que existe na lei sueca, e que não equivale, de todo, ao conceito de violação como «crime cometido por constranger ou obrigar outra pessoa a sofrer ou praticar relações sexuais, por meio de violência, ameaças ou após a ter posto na impossibilidade de resistir.» O delito aparentemente terá sido pressão física para acto sexual, não utilização não consensual de preservativo e até danificação deliberada de um. Ser claro em relação isto não minimiza a gravidade destes actos, chamar-lhe «violação» menoriza a gravidade dos contemplados na definição da Infopedia.

2. Antes de mais, é necessário provar que estes actos aconteceram, e da forma como são descritos pelas vítimas. Prescindir da presunção da inocência em falta de prova viola um princípio básico de justiça, o que afecta acusados e vítimas. Não só porque é inadmissível que os crimes sexuais estejam cobertos de uma aura de dúvida permanente, como ainda porque a discriminação positiva em termos legais infantiliza e fragiliza as mulheres. Acreditar nas mulheres não implica desumanizá-las ao ponto de achar que não podem mentir; e condenar mediante prova revela um sistema jurídico maduro, que não se guia por preconceitos morais (como é o caso quando o sentido é o inverso, isto é, quando as vítimas sabem à partida que não vão ser levadas a sério). Isto não implica que não se tenha em conta a relação de poder entre violador e vítima em tribunal, mas que quebrá-la implica não confundir protecção com paternalismo.

3. Os actos sexuais em questão foram assumidamente consensuais no início. As vítimas alegam que terão deixado de o ser. O que é perfeitamente plausível. Mas é preciso estabelecer como e quando é que o não consentimento é comunicado. No means No em qualquer altura, mas se defendemos que a ambiguidade é admissível como negação, então abrimos espaço à argumentação de que a negação pode ser ambígua. Ambas as vítimas mantiveram comprovadamente um bom relacionamento com Julian Assange após os alegados crimes, o que nos leva à segunda questão: existe violação retroactiva? Sim, se as vítimas não tiverem consciência de que os actos cometidos sobre elas constituíam crime. Mas isto é diferente de admitir que a retroactividade da consciência do crime se aplica às circunstâncias e não aos actos. Uma relação sexual consensual num contexto ilusório passa a violação (menor ou maior…) quando um dos parceiros toma consciência, por exemplo, de que a monogamia é unilateral? As denunciantes dirigiram-se à polícia após uma delas ter entrado em contacto com a outra para saber o paradeiro de Julian Assange; e o que as motivou foi saber se era possível exigir um teste para despiste de doenças sexualmente transmissíveis, não a denúncia de qualquer crime sexual.

4. Qual é a relação entre a legislação e a consciência da população? A lei sueca tem sido descrita como «feminista», mas nenhuma das duas mulheres estava consciente de que teria sido vítima de algum crime até tal lhes ter sido sugerido pela polícia. E como se explica que duas mulheres que vivem numa sociedade que criminaliza o sexo desprotegido (não consentido) exijam um teste em pleno período-janela, como se não existisse a possibilidade real de um falso negativo num dos diagnósticos (o do HIV)? São detalhes menores, mas indiciam que algo está a falhar se a legislação sueca tem objectivos emancipadores/esclarecedores.

5. O ponto absolutamente fundamental: a procuradora que analisou a queixa em Estocolmo considerou que não havia qualquer indício de crimes sexuais. Isso mesmo, o caso foi arquivado. Não houve apelo para outra instância (já que não houve condenação, nem sequer acusação, nem sequer crime), não apareceram novos dados, o processo foi sim entregue noutra jurisdição (Gotemburgo), onde lhe foi dado andamento. Ora, levar a sério os crimes sexuais em contexto legal pressupõe processos cristalinos, sem mácula, sem suspeita clara de ingerência de interesses políticos ou pessoais. Não é o caso.

Em suma, os serviços prestados pela Suécia ao feminismo, pelo menos neste caso, são no mínimo um equívoco. Aliás, pressupor que actos como exercer pressão física para acto sexual com ou sem preservativo são exclusivamente masculinos é absolutamente pacóvio. E machista.
Resta-nos Belmarsh, que tem a virtude de tornar tudo bastante claro. O objectivo é facilitar a extradição de Julian Assange para os EUA, para ser julgado por espionagem. E para aqui o feminismo só é chamado se acharmos que a liberdade e a justiça fazem parte da coisa.

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