quinta-feira, 16 de setembro de 2010

MANOBRAS DE DIVERSÃO CONSTITUCIONAL?

Confesso que sou um bocadinho obsessiva com questões de rigor linguístico, mas acredito piamente que a política também passa por aí. Por isso, esta pré-temporada da revisão constitucional cheira-me a esturro por todos os lados.
Parece-me (e parece-me que também parece ao Jorge Miranda, pelo que disse ontem na Sic Notícias) que, legalmente, "justa causa", "razões atendíveis" e "razões legalmente atendíveis" significam precisamente o mesmo: que a legislação laboral tem de transpor a cláusula constitucional da não arbitrariedade no despedimento. É certo que "causa justa" remete para um sentido de justiça social, mais ténue na fórmula "razões atendíveis", mas o conteúdo definido dessa justiça vem exposto do código do trabalho, quando estabelece concretamente o que se entende por "justa causa" ou "razão atendível", e a verdade mais aterradora é que não é necessária qualquer revisão constitucional para impor a liberalização dos despedimentos. Enquanto nos deixarmos levar pelo engodo de que a "justa causa" remete para uma noção absoluta de justiça e não para um conceito jurídico indefinido, o PSD vai-nos preparando para um programa de governo neoliberal que não causará grande choque e permitirá, por exemplo, que se mantenha a "justa causa" na Constituição enquanto se altera o código de trabalho de forma a permitir que as "razões atendíveis", nada justas, que têm vindo a ser propostas sejam inscritas na legislação — porque nada impede que sejam definidas como "justa causa" (julgo aliás que esta estratégia do "primeiro estranha-se, depois entranha-se" também se aplica ao discurso absolutamente ilógico de que é acabando com a estabilidade no emprego que se combate a precariedade, que tem sido repetido até à exaustão pelos líderes do PSD…).
Aliás, o que menos percebo é que isto seja sequer discutido: basta ao PS dizer não, e não há revisão constitucional. Entretanto, vem aí o orçamento de Estado, e já se fala em mais medidas de austeridade, e temo que os ataques aos direitos mais básicos sejam feitos sob a alçada da bandeira do "Estado social", e que respiremos de alívio perante mais fragilidade na contratação, a liberalização total do recurso aos recibos verdes e a diminuição das prestações sociais… porque a "justa causa" permanece (e bem!) na Constituição!
Espero sinceramente estar muito enganada. Mas esta coisa de acharmos que os outros são todos estúpidos (quantos dedos de testa é preciso para perceber que a Constituição não pode remeter para nada que não seja legalmente atendível?!) é do mais perigoso que há em democracia. E eu tenho medo — da estratégia do PSD e do oportunismo do PS. E da falta de rigor na discussão, que é das técnicas de marketing político mais eficientes, como se tem visto.

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