terça-feira, 15 de março de 2011

PARA QUE SERVEM OS CENSOS?















Está em curso uma das actividades mais importantes no estudo de uma sociedade — de dez em dez anos, o INE afere as condições de vida das pessoas que dela fazem parte, e os dados servem não apenas para o autoconhecimento, mas para definir estatísticas credíveis e, entre outras coisas, estabelecer políticas que tenham por base a realidade. Por isso, é um imperativo ético (e legal) que colaboremos com os recenseadores. Porém, o imperativo ético de base é que os censos sejam elaborados de forma a conseguir dados fiáveis, que espelhem um país real, e não resultados que favoreçam as políticas em curso.
E é aí que a porca torce o rabo, pelo menos na pergunta 32 dos censos 2011. A pergunta "Qual o modo como exerce a profissão indicada?", para começar, é vaga. Se a resposta fosse aberta, eu escreveria "sentada." Na ausência de um atributo claro para classificar, e uma vez que a resposta é de escolha múltipla, qualquer recenseado avalia o que é perguntado à luz dos atributos variáveis nas respostas fornecidas. E as respostas "patrão/empregador", "trabalhador por conta própria ou isolado", "trabalhador por conta de outrem", trabalhador familiar não remunerado", "trabalhador familiar não remunerado" e "membro activo de cooperativa de produção" indicam claramente que a pergunta deveria ser "Qual é a sua situação laboral?"
Mas até aqui tudo estaria até relativamente normal, se a pergunta não especificasse que "se trabalha 'a recibos verdes' mas tem um local de trabalho fixo dentro de uma empresa, subordinação hierárquica efectiva e um horário de trabalho deve assinalar a opção 'trabalhador por conta de outrem.' " É louvável que quem elaborou o questionário tenha tido o cuidado de prever uma situação que de facto merece uma categorização individual que não deveria caber em "outra situação", mas é escandaloso que essa consciência se traduza num esforço deliberado para manipular os resultados. E se politicamente é gritante que se descreva uma situação ilegal, considerada à luz de um estudo sério suficientemente representativa para ser discriminada, de um ponto de vista da seriedade dos resultados é inadmissível que se descrimine uma situação específica sem prever resposta que a cubra, e que se induza quem responde a lançar ruído sobre qualquer aferição de dados reais. É que a diferença entre "trabalhador por conta de outrem" e "trabalhador independente" não é meramente nominal, traduz-se em modos diferentes de exercer a actividade, na exacta medida em que corresponde a direitos e deveres diferentes. Aliás, se os termos fossem equivalentes, uma pessoa não poderia ser simultaneamente trabalhadora por conta de outrem e trabalhadora independente, e é perfeitamente legal ter um contrato de trabalho com uma entidade e passar recibos verdes que correspondam a prestação ocasional de serviços a outra. Mais ainda, existem situações claras de trabalho por conta de outrem que não contemplam horário de trabalho, local de trabalho e estrutura hierárquica, por isso nem o mais ingénuo dos analistas poderá perceber que raio de "modo de exercer a actividade" está a ser contabilizado.
Mas a manipulação não termina aqui. No caso dos "verdadeiros" recibos verdes, não existe distinção entre verdadeiros empresários e prestadores ocasionais de serviços. O que remete qualquer ser pensante para responder de acordo com o facto de estar ou não inscrito como trabalhador independente. E isso de facto levanta uma questão complicada para quem está inscrito como trabalhador independente mas não trabalha por conta própria na medida em que recebe uma remuneração constante da mesma entidade mediante o cumprimento de um horário de trabalho e tarefas definidas hierarquicamente (daí que os movimentos de precários sugiram aos falsos recibos verdes que façam algo de verdadeiramente subversivo: dizer a verdade, respondendo "outra situação"). E os verdadeiros portadores de recibos verdes que tenham trabalhado pelo menos 1h na semana de 14 a 20 de Março através da prestação de serviços em condições definidas pelo empregador que incluam local fixo dentro de uma organização com subordinação hierárquica e horário definido (situação perfeitamente normal) também são considerados trabalhadores por conta de outrem, à luz das instruções fornecidas. Se não tiverem trabalho nessa semana, porém, não estão desempregados, antes trabalham por conta própria e são trabalhadores independentes, pois claro.
O objectivo é claro: aglutinar o maior número possível de situações sob o conceito de emprego legítimo. Criou-se um questionário que impossibilita um padrão consistente de respostas e que, de qualquer maneira, não permite aferir objectivamente como exercem os portugueses a sua profissão.
Em suma: nesta questão os censos não servem para absolutamente nada. Gastam-se recursos, exploram-se pessoas e impossibilita-se qualquer trabalho de investigação estatística sério para os próximos dez anos, apenas para criar uma imagem idílica de um país que todos sabemos que não existe.

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