sábado, 12 de fevereiro de 2011

JÁ ESTOU COM AS PUTAS DAS GERAÇÕES PELOS CABELOS

Gosto muito dos Deolinda. Mesmo. E só quem nunca ouviu o Movimento Perpétuo Associativo é que acha que agora é que lhes deu para a "canção de intervenção." E só quem nunca ouviu o Movimento Perpétuo Associativo se deixa levar pelo engodo de que a canção de intervenção não pode ser simultaneamente feita de denúncia e autocrítica.
Se o chinfrim sobre o Parva Que Eu Sou tem a vantagem óbvia de transpor a precariedade para lá de quem a tem contestado (quem é que alguma vez, tirando a Ferreira Leite, usou o termo "precário" sem ser como denúncia?), não deixa de ser confrangedor verificar que a palavra "geração" se sobrepõe a "precariedade" em muitos discursos.
Ora, parvo é achar que se há uma geração afectada pela precariedade ela se pode definir por escalões etários, e não pelo conjunto de pessoas que vive numa determinada altura. Ser precário não implica ter menos de 35 anos ou ter um curso superior, nem tão pouco trabalhar num call-center ou numa caixa de supermercado. Precários há-os com todos os níveis de ensino e nos mais variados trabalhos — é claro que deixámos de ser uma minoria que tinha escolhido formação por "capricho" (ou uma maioria que não teve o capricho sequer de poder escolher não ter nenhuma), e que actualmente o que era masoquismo nefelibata ou falhanço se tornou a norma. Mas uma norma que afecta gente de todas as idades, incluindo quem se vê desempregado para dar lugar a contratos precários, os pais que continuam a ter de apoiar os filhos quando eles já trabalham, os filhos dos precários que não estão contemplados nas leis de protecção da parentalidade e os precários que os têm e para quem trabalhar sem horário não é sequer opção. Com a precariedade perdemos mesmo todos, e esse é que é o grande problema: um mercado de trabalho que sacrifica vínculos sérios sacrifica a experiência, a formação, o desempenho, a produtividade, o prazer no trabalho. E uma sociedade que sacrifica o bem-estar dos seus cidadãos por opção e regride nos níveis de desenvolvimento humano é uma sociedade patológica do ponto de vista da história da humanidade.
Fazer disto uma questão geracional 25-35 é, antes de mais, transformá-lo numa luta entre gerações. Não admira portanto que a brigada neoliberal tenha aproveitado para dizer que não temos empregos decentes porque os nossos pais sacrificaram o nosso futuro. Terá sido quando pagaram as escolas, os hospitais, o direito a percebermos que éramos mais do que joguetes do fatalismo e da miséria? Ou será quando, pais ou não, nossos ou não, também sentem na pele, nos seus tronos de "instalados", que a vida anda para trás? Não é certamente quando acham legítimo receberem uma reforma depois de terem trabalhado toda a vida — é que é o que lhes/nos vale, se a actual "geração" não quer ou não pode retribuir o investimento (lá está… paguem um lar ou tomem conta de quem sempre tomou conta de vocês com 500 euros por mês e a trabalhar 12 horas por dia).
Parvos somos se esquecemos que vivemos num sistema de solidariedade entre gerações, e que a interdependência nos protege a todos. Ou quando aceitamos trabalhar nas condições que nos impõem. E somos mesmo parvalhões se não percebemos que contribuímos para isto tudo se nos calamos e dizemos aos outros para irem andando, que nós já vamos lá ter.
No dia em que me conseguirem convencer que há uma sílaba nos Deolinda que sugere que a precariedade é má porque não somos todos precários ou que é má porque NÓS somos precários, até dou razão a quem diz que sim, somos parvos, mimados e burros que nem uma porta (ou uns coitadinhos sem eira nem beira, que vem a dar ao mesmo).
Mas se acham mesmo que isto é uma questão de idade, digam-me: quando é que nasceram os meninos e as meninas que se alimentam do que falta nas nossas vidas, lá nos confins dos casinos financeiros?

2 comentários:

  1. Gosto muito, muito da sua análise ! Clara, concisa, e sobretudo bem concreta e lúcida !
    Eu que não estou entre os 25-35 anos, já tinha pensado no que diz. E, sobretudo, sentido!

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  2. Claro que não é uma questão geracional, até porque há muita gente da nossa geração que acha que isso de ganhar 500 euros é "para quem nunca fez um esforço ou é demasiado preguiçoso". Simplesmente porque tiveram sorte e aos 30 já saíam da garagem do condomínio directamente para a garagem da empresa no seu Audi ou BMW. Só por sorte... e por muita cabeça enfiada na areia, porque nunca foram jantar fora com amigos que não estivessem na mesmíssima situação. Afastaram-se dos colegas de liceu ou de faculdade que não tiveram o mesmo desenlace e convenceram-se a si próprios de que era por grande mérito ou esforço ou valor, etc.

    Por outro lado, há algumas (poucas, infelizmente) empresas em que os funcionários do quadro perceberam que estão muito ameaçados com o aumento dos recibos verdes. Porque um precário é muito mais barato que um trabalhador do quadro e sabem que correm o risco de ser substituídos assim que se arranje uma desculpa. Se puderem ser substituídos por estagiários gratuitos, então é uma maravilha! (Desse assunto sei eu!)
    Os trabalhadores que têm a sorte de ter um contrato estão tão ameaçados pela precariedade como os precários. Mesmo que prefiram viver na ignorância.
    Enquanto não se perceber que é um problema de todos, porque, como muito bem dizes, lá se vai a solidariedade inter-geracional com salários de 500 euros e porque todos os postos de trabalho estão em risco, o ciclo da precariedade em alta continua e a inspecção geral do trabalho continua de olhos fechados.

    Mas uma letra de uma canção é isso mesmo, uma letra de uma canção, não é nem tem que ser um manifesto completo. Tem que pôr o problema a nú e dar a deixa para se pensar no assunto. Cada um tem o seu estilo de escrita artística, os Deolinda sempre andaram ali entre a tragi-comédia, a auto-crítica e a sátira. É um estilo artístico (eu gosto, admito que haja quem não goste) e dentro do seu estilo, a coisa está bem posta.

    O chinfrim de que falas é de quem não sabe o que há-de dizer e portanto explica que a canção não é um tratado socio-económico completo nem uma tese de doutoramento sobre a situação actual do país. É um facto. Uma canção é uma canção. Não têm mesmo mais nada a apontar? Um argumento válido, um só? Vá lá... meio argumento?
    Pois... cqd!

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